segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Arte e libertação?

Fui seduzido pelo artigo com o título “Arte e Libertação” e acessei o link. O site pareceu-me interessante "Cristianismo Criativo" e o artigo "Arte e Libertação" também. A Revista Eletrônica é, de modo geral, boa, mas o artigo...

Eu li o artigo e não consegui contemplar a tal criatividade cristã no texto. Pareceu-me uma colcha de retalhos com uma suposta denúncia-clichê de alguém que se pretende criativo. Ao contrário da maestria de teólogos como Bonhoeffer e Tillich que dialogavam teologicamente com as mais variadas áreas do saber humano, este artigo fez misturas horríveis. Se eu fosse um esteta pós-moderno talvez apreciasse o texto.



Em linhas gerais:



1) Ficou faltando destacar quais são os clichês que são tão problemáticos. Se o clichê é não ter clichê, então está criado mais um clichê.



2) Também faltou clareza sobre o significado de “novas liturgias”, pois, em perspectiva bíblica, liturgia não é apenas culto. Outro aspecto a este relacionado é a “liturgia como formação e modelagem da subjetividade”. Existe alguma liturgia que não seja reflexo de alguma teologia e vice-versa? Será que as liturgias não são modeladas, modelagens e meios de modelagem? Retomando o saudoso Pierre Bourdieu, será que cada liturgia não reflete um habitus cultural e, ao mesmo, o reafirma e reinterpreta-o?



3) Com relação à interação cultural da parte do/a cristão/ã, citada no artigo, é óbvia esta necessidade. Mesmo porque a espiritualidade apresentada por Cristo é um mix entre vida piedosa e ação em prol do/a outro/a. Ser criativo/a, observando esta compreensão, é saber harmonizar as duas partes supracitadas.



4) Algo, que não é tão criativo e ecoou clichê, se refere à participação nas rodas de samba burguesas mencionadas no texto. Não adianta censurar a ausência da igreja em espaços humanos como o destacado, se não houver reformulação nos conteúdos, metodologias e formas utilizadas na educação cristã de uma igreja local. Tampouco vale a censura se não há disposição, empenho e trabalho com vistas a algo diferente.



Uma vez que a “Cristianismo Criativo” não é uma Revista Acadêmica, antes lida por muitas pessoas “leigas” nas reflexões teológicas científicas, o/a escritor/a tem que facilitar a vida do/a leitor/a. Por isso, para se aventurar a colocar um artigo desta magnitude numa Revista Popular é preciso muita sensibilidade e respeito por quem a lê. Assim, observe o que seria oportuno esmiuçar neste artigo:



1) as diferenças entre Teologia Cotidiana e Teologia Acadêmica, pontuar as contribuições de ambas e propor o fim do embate entre as duas Teologias.



2) os diversos sentidos do termo “liturgia” e pontuar que o uso feito no artigo se refere ao “culto espiritual”.



3) os significados da expressão “pregação” e indicar que a mesma será utilizada com o sentido de “sermão”.



4) o que significa “clichê”, quem considera um “clichê” clichê (questão de poder) e quais são os clichês problemáticos e por quais motivos.



5) a diferença entre “música-de-crente” e “música-que-não-é-de-crente”, porque foi criada tal distinção, e avaliar se existe alguma distinção.



6) o significado de arte (produção cultural), destacar as formas de arte (a escultura, a pintura, o teatro, o cinema, a literatura, a música), explicar do ponto de vista histórico-social e teológico o problema criado pelo protestantismo com relação às expressões artísticas.



7) o uso de ideias, conceitos, teses de pensadores/as, cantores/as e compositores/as que não fazem parte do ambiente cristão; até onde podemos usá-los; os limites do uso.



8) o motivo pelo qual não se pode usar Bonhoeffer e Vattimo nos espaços educacionais da igreja (aula na Escola Dominical, Sermão, Estudos Bíblicos, encontros de Discipulado etc); destacar quem são as pessoas que acham estes teólogos tão ameaçadores e os motivos.



9) as razões que fizeram com que o templo da Igreja Ortodoxa seja menos freqüentado do que o salão de festas desta comunidade cristã.



10) as diferenças entre uma linguagem religiosa e outra arreligiosa.



11) as motivações para uma distinção “judaico-cristã” entre sagrado e profano, bem como a postura de Jesus Cristo com relação a este tema.



12) a necessidade de “recriar símbolos, mitos, metáforas e ritos , associando práticas de alteridade radical a elas. Não só no campo da cultura, mas também nos campos da política e economia.” E pontuar qual a relação entre as bases da ciência (epistemologia) e o tema em discussão.



13) os ritos de catarse que as comunidades cristãs carecem ou não.



14) o que tem desumanizado as comunidades cristãs.



Muita coisa ainda poderia ser questionada, porém para isso não virar uma Banca de Doutorado...  podemos parar por aqui.



Se alguém quer escrever numa revista "não-científica" para cristãos/ãs, deve arcar com a responsabilidade de explicar quantas vezes for necessário. Ninguém que "visita" a "Cristianismo Criativo" é obrigado/a a saber de toda a discussão acadêmica teológica que existe. Se o/a escritor/a está investido/a de poder para escrever, que o faça com amor, didática, pedagogia etc.



O texto é clichê e, dependendo do ponto de vista, a minha análise é um mega clichê.



Estou cansado desta falsa crítica. Digo falsa porque a crítica (pelo menos em perspectiva científica) se propõe a ressaltar aquilo que há de positivo e negativo numa dada realidade. E se a crítica surge do âmbito da Teologia Pastoral, ela, além de observar as questões anteriores, ousa apresentar sugestões para desenvolver o que está bem e corrigir aquilo que está mal.



Enfim, até a expressão “estou cansado de tal coisa no cristianismo” é clichê.



Que Deus liberte a arte enclausurada no artigo “Arte e libertação”! Que o Senhor ajude o escritor do artigo a apresentar ideias perigosas com maior precisão, fundamentação e amor pelos/as leitores/as.



Graça, paz e bem!




Arte e Libertação

Ano passado, comentei com o pastor da minha igreja que achava que as letras das músicas cantadas nos cultos evangélicos brasileiros careciam muito de boa poesia. Ele então me incentivou a escrever um artigo sobre o assunto.

Cresci tocando em igrejas. Depois comecei a pensar nos porquês e finalidades da música na igreja. E depois comecei a pensar nos porquês e finalidades da igreja. E depois comecei a pensar em Deus. Recorri à Teologia como autodidata. Enquanto conversava com a senhora Teologia, deixei a senhora Música esperando. Quando disse a um amigo crente que estava gastando tempo com a Teologia, ele foi sincero recomendando que eu investisse tempo na Culinária ao invés, pois, de acordo com ele, me seria muito mais útil. Mas não consigo parar de pensar nesses assuntos (Este mesmo amigo chama nossa pequena tchurma às vezes de "crentes-cara-de-pau").

A música, juntamente com outros elementos tradicionais da liturgia, como a pregação, faz uso da linguagem para expressar sentido. Tenho, contudo, um problema com a música nas igrejas evangélicas: a sua linguagem me soa como clichês derivados de clichês. Um léxico cíclico entediante. Cheguei à conclusão que o que esvaziou as letras das músicas de sentido foi a falta de interação externa. Sim, o problema é teológico: não esperava nada menos da igreja que estar completamente inserida no mundo, assim como Jesus se encarnou. Esperava que as linguagens encontradas em igrejas fossem as mesmas das culturas nas quais estivessem embutidas.

Uma vez em Brasília fui visitar a Torre de TV, onde há várias barracas de comércio informal. Em um ou dois cantos havia rodas de samba. E no centro do comércio havia um grupo de jovens crentes "evangelizando", isto é, cantando músicas-de-crente. Pareciam ETs. Por que esses jovens não estavam nas rodas de samba? Por exemplo, ouvi um compositor cristão pós-graduado em Letras – pouco cantado nas liturgias das igrejas evangélicas - que baseou sua música no Salmo 73. É muito louvável a iniciativa de se cantar os Salmos. Contudo, a letra espiritualizada passava longe do problema de distribuição de renda no Brasil. Quando é que vamos desempacotar a pergunta "quem é Deus para o brasileiro?" em bom Português?

Cheguei também à conclusão que muitas vezes a música é abusada por líderes evangélicos para centralizar a experiência cristã no culto e para blindar a linguagem. Será que esse é o caso da sua igreja atual? Senão vejamos: pergunte à liderança da sua igreja por que outras artes como a escultura, a pintura, o teatro, o cinema, a literatura não têm o mesmo espaço que a música.

Nos evangelhos, vejo Jesus comendo freqüentemente com as "pessoas erradas" (Mateus 22.10; Lucas 5.29; 7.34-39; 14.13; 19.7). Jesus constantemente traz para perto de seu convívio "os de fora". E o faz não só comendo, como curando e convivendo. Aliás, essa é uma leitura que vejo permear as Escrituras inteiras. Inúmeros teólogos sublinham a presença de Deus no outro. O Rabino-Chefe da Grã-Bretanha, professor Sir Jonathan Sacks, por exemplo, na entrevista do show Being da NPR desloca a revelação para o outro citando vários exemplos: a filha de Faraó no Êxodo, filha do vilão, salva o mocinho; enquanto vários profetas israelistas pregam e o povo de Israel não dá ouvidos, Deus manda um profeta – Jonas – aos assírios, inimigos históricos dos israelitas, e depois de uma curtíssima pregação de Jonas de 5 palavras todos se arrependem. Se um amigo seu lhe perguntasse "o que devo fazer para conseguir a vida eterna?", o que você responderia? Ao ser perguntado, Jesus responde contando a parábola do Bom Samaritano. Nela, o herói citado por Jesus que responde à pergunta sobre salvação é o samaritano herege (note que o samaritano nem fala nada com o homem ferido).

Ainda em Mateus 25, ao falar sobre o julgamento final e a recepção do Reino eterno, Jesus está escondido no outro, o outro sofredor (pense um pouco no critério usado para ir para o lado direito).

A Cristandade vista como um período histórico em que o Cristianismo esteve imbricado com a vida pública se foi de acordo com uns ou está indo de acordo com outros. Nossos dogmas, afirmações e identidades religiosas outrora baseados na Cristandade de repente não se justificam por si sós. Muitos de nossos "conceitos fundamentais" nada mais foram do que construções sociais. Jorge Luis Borges diz que em uma enciclopédia chinesa os animais do mundo são classificados assim: pertencentes ao imperador, embalsamados, domesticados, leitões, sereias, fabulosos, cães em liberdade, incluídos na presente classificação, que se agitam como loucos, inumeráveis, desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, et cetera, que acabam de quebrar o vaso e que de longe parecem moscas. Necessitamos, portanto, de novas linguagens e de novas práticas que façam algum sentido hoje. Mesmo que o leitor não concorde que nossos dogmas, afirmações e identidades religiosas não se justificam por si só nos dias de hoje, seria necessário neste caso no mínimo um exercício de recontextualização e revalidação da linguagem evangélica atual.

(Tenho pensado sobre Bonhoeffer. Claro que você não vai ouvir falar muito de Bonhoeffer na sua igreja. Que pastor iria querer dar esse tiro no pé?) Vejamos: "tanto Vattimo como Bonhoeffer entendem a secularização como um fenômeno intrínseco ao Ocidente cristão. Segundo Bonhoeffer, o processo de secularização, ‘a cuja etapa final hoje assistimos’, é um processo de libertação da razão que se intensifica com a Reforma, ao desdivinizar o mundo [...]" (Meu comentário: o tiro no pé dos Protestantes). "O ser humano aprendeu a dar conta de si mesmo em todas as questões importantes sem apelar para a ‘hipótese de trabalho [de] Deus’", diz Bonhoeffer’ no livro Resistência e Submissão (D. Bonhoeffer, Resistência e submissão, 2003, p. 434). "[Q]uanto mais a religião se coloca contra esse processo de secularização, mais tal processo se compreende como anticristão, afastando ainda mais o cristianismo da sociedade." "Discutindo o papel da religião no mundo secularizado, Bonhoeffer chega a questionar o valor das palavras – num mundo arreligioso talvez não se possa mais ‘falar de Deus’."

Nos últimos anos fui algumas vezes ao Festival Grego onde moro, em Ottawa, no Canadá. O lugar tem duas partes: o templo da Igreja Ortodoxa Grega e a área da festa, com tendas, mesas, comidas, vendinhas, brinquedos para crianças e uma área ampla para danças. A igreja estava a maior parte do tempo vazia. A área de festa estava a maior parte do tempo lotada. Tudo acontecia na área de festa. O templo só tinha pessoas no tour guiado ao seu interior e eram sempre poucas. Sim, não deve haver divisão entre sagrado e profano (Marcos 15.38, Atos 10.15). Nossas vidas não são compartimentalizadas. Não somos menos santos às segundas-feiras. Afinal, não é Deus onipresente? Enquanto alguns poucos evangélicos até concordam com o princípio de que não deve haver divisão entre santo e profano, na prática os evangélicos estão longe de demonstrar práticas que assumam ou desenvolvam ou explorem tal ideia.

"Nossa igreja, que nestes anos lutou apenas pela sua própria preservação, como se fosse um fim em si mesma, é incapaz de ser portadora da palavra reconciliadora e redentora para os seres humanos e para o mundo. Por isso, as palavras anteriores têm de perder a força e ficar mudas, e nossa existência cristã consistirá hoje apenas em duas coisas: em orar e praticar o que é justo entre as pessoas. Qualquer pensar, falar e organizar as coisas do cristianismo tem de renascer desse orar e praticar." (D. Bonhoeffer, Resistência e Submissão, 2003, p. 397)

"O que me ocupa incessantemente é a questão: o que é o cristianismo ou ainda quem é de fato Cristo para nós hoje. Foi-se o tempo em que se podia dizer isso para as pessoas por meio de palavras – sejam teológicas ou piedosas; passou igualmente o tempo da interioridade e da consciência moral, ou seja, o tempo da religião de maneira geral. Rumamos para uma época totalmente arreligiosa; as pessoas, sendo como são, simplesmente não conseguem mais ser religiosas. [...] toda a nossa pregação e teologia cristãs de 1.900 anos baseiam-se no a priori religioso das pessoas. O ‘cristianismo’ sempre foi uma forma (talvez a verdadeira) da ‘religião’. Ora, se um dia evidenciar-se que esse a priori nem existe, mas foi uma forma de expressão historicamente condicionada e passageira do ser humano, se, portanto, as pessoas tornarem-se radicalmente arreligiosas – e acredito que em maior ou menor grau esse já seja o caso – então o que isso significa para o ‘cristianismo’? Tiram-se as bases de todo o nosso ‘cristianismo’, da maneira como existiu até agora [...]" (Bonhoeffer, carta a Eberhard Bethge em 30/4/1944 in "Resistência e Submissão: Cartas e Anotações Escritas na Prisão")

"Não é de nossa alçada prever o dia – mas esse dia virá – no qual as pessoas serão novamente vocacionadas para expressar a palavra de Deus de tal maneira que o mundo seja transformado e renovado por ela. Será uma nova linguagem, talvez totalmente arreligiosa, mas libertadora e redentora como a linguagem de Jesus..." (D. Bonhoeffer, Resistência e Submissão, 2003, p. 397, grifo meu)

Há muito mais coisas acontecendo fora do templo. Há muito mais vida. (João 10.10) Contudo, a linguagem utilizada pelos crentes hoje só faz sentido dentro do templo (ou provem-me o contrário). Não creio que nossos esforços devam ser na direção de levar a festa para dentro do templo, mas de identificar o divino na festa (Lucas 17.21, João 2.2) Sabemos que cantamos o que acreditamos e acreditamos no que cantamos. O nada-dizer ou o dizer-confuso leva, em certa medida, as práticas das igrejas locais a serem também ou nada ou confusas. Não só isso, mas o fazer-nada de muitas igrejas, disfarçado de ativismo, requer músicas que não falem nada. Que muro é esse que separa a religião de todo o resto da vida? Sim, este muro impede que a complexidade, a beleza e o caos da vida questionem ou ameacem o que cremos. Pois o que cremos, por definição, é aquilo que não deve ser questionado, não é?

Pois a liturgia é também um processo de formação e modelagem de subjetividades a longo prazo. A teologia influencia a liturgia, mas não devemos subestimar o vice-versa.

"[Para além da cristandade,] há uma religião verdadeiramente cristã, sem dogmas (Deus, o chamamos pai, mas podemos também chamá-lo mãe; os padres são homens, mas poderiam ser também mulheres), fundada na fé e na esperança de que com a caridade se realiza verdadeiramente o reino de Deus, começando por este mundo. [...] O verdadeiro ecumenismo cristão se realizará quando o próprio cristianismo compreender que deve abater as barreiras que ele mesmo criou – e que o pontificado atual parece querer cada vez mais solidificar: aqui nós, cristãos, lá, o Islã malvado; aqui os normais, lá, os gays e os diferentes. A tarefa dos cristãos não é converter os outros e fazê-los tornarem-se como nós; mas começar a liquidar a própria (pretensão de) identidade, para acolher a todos." (Vattimo, "O cristianismo e a ultramodernidade", IHU on-line)

Prince também ficou preso por um tempo ao seu próprio nome. Reconhecendo que contratos comerciais aprisionaram seu nome, Prince criou um novo nome para si, representado apenas pelo símbolo (inpronunciável).

Precisamos de artistas que andem e convivam imersos na cultura, sem limites, sem falsas divisões entre sagrado e profano.

Precisamos de artistas que desenvolvam novas linguagens, compreendendo este exercício como um exercício que caminhe a Teologia. Aconselho a andar principalmente com teólogos atuais mentes-abertas, pois do contrário corre-se o risco de herdar vícios de linguagens e de práticas (Marcos 2.22). Nesse exercício a confecção de novas linguagens deve envolver "os de fora" (sabendo que "os de fora" é uma ilusão, pois não há divisão entre "nós" e "eles").

Precisamos desconstruir a "identidade cristã", redefinindo nossas várias identidades executando práticas reconfiguradoras e libertadoras (de Jesus).

Precisamos explorar a noção da morte de Deus (na cruz) e dos paradoxos da morte das identidades (1 Cor 15.36)

Precisamos resgatar a Eucaristia, explorando o Corpo místico de Jesus. Precisamos integrar a Eucaristia com o cotidiano e com nossas lutas sociais.

Precisamos explorar a epistemologia com muita arte. Precisamos desenvolver uma sensibilidade ao que está ao nosso redor com uma alteridade radical. No nosso tempo, muito do que é visto como "real" são percepções muito deturpadas. Desejos e subjetividades são moldados pelo marketing forte. Não faz sentido sapatos serem vendidos a R$ 400,00 nos shoppings. O que norteia nossa noção de "valor"? Por que coisificamos tudo? Quais são as implicações para nossas práticas de alteridade?

Precisamos lembrar que o meio é a mensagem.

Precisamos recriar símbolos, mitos, metáforas e ritos, associando práticas de alteridade radical a elas. Não só no campo da cultura, mas também nos campos da política e economia.

Juntamente com a exploração da epistemologia, precisamos redescobrir o corpo humano (Luc 22.19).

Juntamente com a redescoberta do corpo humano, precisamos subverter os limites do moralismo farisaico e doentio. Precisamos ouvir e tocar mais Cazuza e Vinícius de Moraes. Precisamos de ritos de catarse.

Juntamente com a exploração da epistemologia, precisamos abraçar o caos da vida. Precisamos identificar nossos pequenos e grandes fracassos. Precisamos de uma boa dose de pessimismo. Precisamos resgatar o livro de Eclesiastes. Precisamos reconhecer as fés que falham. Precisamos dar lugar à dúvida. Precisamos de espelhos. Precisamos estar sempre juntos daqueles que sofrem perto de nós. E no Brasil são muitos.

Devemos usar tecnologia com sabedoria, evitando elitizar a comunidade e evitando a exclusão dos milhões que sofrem no Brasil.

Precisamos rejeitar o gueto, a subcultura e a massificação evangélica, identificando-os mais explicitamente como práticas pecaminosas. Precisamos identificar e nomear o sequestro e o abuso das artes por líderes e pelos sistemas (capitalistas, hierárquicos, machistas, excludentes, racistas, elitistas, etc) para fins pecaminosos. Não fazê-lo é ser cúmplice.

Precisamos criar Comunidades Humanas de Base.

Nessas Comunidades Humanas de Base, precisamos experimentar várias ideias de "liturgia". Por exemplo, guardarei comigo duas lembranças de Brasília para sempre de Eucaristia.

A primeira experiência foi quando estive numa reunião do Comitê do DF da Campanha Pelo Limite da Propriedade da Terra para organizar o plebiscito popular em 2010. Éramos motivados e estávamos re-unidos ali pela dignidade humana. Compartilhávamos bolachas e café enquanto discutíamos os problemas seculares do Brasil relacionados à distribuição de terra e enquanto planejávamos ações práticas.

A segunda experiência foi minha caminhada com a comunidade do Núcleo Rural Monjolo ao longo de 2009 e 2010 (Assista no Youtube ao documentário "Monjolo: Todo Mundo Tá Feliz?" que eu produzi sobre a história dessa comunidade). Resumidamente, o Núcleo Rural Monjolo é formado majoritariamente de famílias que subsistiam de reciclagem do lixão de Brasília e que foram removidas à força de suas casas para o meio do nada pelo Governo do Distrito Federal. Tive o privilégio de caminhar com algumas dessas famílias e apoiá-los nas suas várias necessidades. Ali coabitam evangélicos, católicos, espíritas, ateus e sem-religião. Ali política é algo muito prático: determina se terão moradia e pão na mesa ou não (sendo o "não" um caso frequente). Embora não tenhamos tido tempo de elaborar mais profundamente algumas das sugestões desse texto, guardarei comigo as imagens únicas das repetidas vezes quando várias famílias se reuniram para comer, tocar música, declamar poesia, discutir os problemas da comunidade e falar de ações políticas.

Uma das cenas finais do filme do Bob Esponja mostra-o fazendo um solo de guitarra vestido de mágico. O raio que sai da sua guitarra destrói os capacetes que controlavam os indivíduos, libertando-os. Gosto dessa metáfora. Gosto de pensar na arte como agente no processo de libertação.

" (...) Fora da poesia, não há salvação.A poesia é dança e a dança é alegria. Dança, pois, teu desespero, dança

Tua miséria, teus arrebatamentos,

Teus júbilos

E, Mesmo que temas imensamente a Deus,

Dança como David diante da Arca da Aliança.

Mesmo que temas imensamente a morte

Dança diante de tua cova.

Tece coroas de rimas…

Enquanto o poema não termina

A rima é como uma esperança

Que eternamente se renova. (...)" - Mário Quintana