quarta-feira, 18 de junho de 2008

Discernindo entre as vontades divina e humana


Jesus nos capítulos 5 a 7 de Mateus "submete" os/as discípulos/as a um “intensivão”. O Senhor se dispõe a ensinar os/as seus/suas seguidores/as e, dentre vários ensinamentos, Ele explica como deve ser a verdadeira oração nos versos 9 a 14 do capítulo 6. Especialmente no versículo 10b Jesus afirma que os/as discípulos/as devem orar pedindo que a vontade de Deus seja feita: Faça-se a Tua vontade, assim na terra como no céu.

Este pedido está intimamente ligado às situações anteriores. Sendo assim, percebemos que o Diabo no capítulo quatro havia feito propostas estranhas para Cristo, ou seja, cuidar dos próprios interesses quebrando assim a unidade com o Senhor, tentar o Pai Celeste, ter domínio escravizador sobre a humanidade, obter tesouros e glórias egoístas e adorar a Satanás. Tais proposições, se averiguadas pelo avesso apontam para a vontade de Deus. Deste modo, agir em conformidade com o Senhor implica em colocar o Reino acima dos interesses pessoais, agir fielmente para com o Pai Celeste, servir amorosamente a humanidade, glorificar a Deus através das realizações e adorar ao Senhor.

Em seqüência, no capítulo 5, nós vemos que Jesus destaca àqueles/as que são tementes a Deus que eles/as devem prezar por determinadas características e ações. Cristo ressalta a humildade, o choro daqueles/as que são oprimidos/as, a mansidão, a fome e sede de justiça, a misericórdia, a limpeza de coração, a promoção da paz, a caminhada justa e a fidelidade a Jesus. Em seqüência, todas estas menções anteriores se associam ao fato de que o/a discípulo/a deve ser sal da terra e luz do mundo, valorizar a Torah, não matar, não adulterar, não jurar, não agir vingativamente, amar ao/à próximo/a, cuidar dos/as necessitados/as sem alarde e orar sinceramente. Portanto, todas estas orientações são indicativas da vontade de Deus.

Se acrescermos a tudo isso os ensinamentos que se dão até o final do capítulo sete, então o que se percebe é que Jesus demonstra qual é o conteúdo da vontade de Deus. Tal vontade é caminho de felicidade. Tal vontade é caminho e no caminho os indivíduos estão sujeitos a acertos e erros. Por isso, graças rendamos pela Graça. Embora exista muita coisa que se passe na mente do Pai Celeste e que nós não conseguimos nem imaginar o que seja, nós temos condições de perceber uma parte daquilo que está no coração do Senhor. Então quando Cristo ensina os/as seguidores/as a orarem pedindo a vontade de Deus aqui está embutido que quem pede algo se compromete com o pedido e sabe o que se está pedindo. Deste modo, com base nos capítulos anteriores, quem prioriza em seus pensamentos, caminhos e palavras a humildade, a solidariedade, a mansidão, a justiça, a misericórdia, a limpeza do coração, a paz, o conhecimento e o amor está declarando a vontade de Deus em sua vida.

Todos/as nós tomamos decisões e, a partir destas, agimos no dia-a-dia. No entanto, é estranho que muitos/as “cristãos/ãs” as tomem e sempre coloquem o Pai Celeste como o grande responsável pelos resultados, especialmente os negativos. Para piorar usam aquela célebre frase abrutalhada e oca: “foi o Senhor quem quis”. Todavia é preciso perguntar: será que as ações exercidas estavam fundamentadas nas orientações de Jesus que refletem a vontade de Deus? Se as nossas atitudes não refletem a vida do Senhor então não ousemos dizer que uma decisão egoísta e maléfica é vontade do Pai Celeste. O/A cristão/ã deve ser no mínimo sincero/a, isto é, assumir que fez algo sem observar os valores do Reino. É digno de menção quando alguém admite que pecou porque pensou somente em si. É muito bonito quando a pessoa declara que Deus não tem nada a ver com o ciúme experimentado, o melindre, a inveja, o ódio, o lobby, a falcatrua, a traição etc.

Quando a Igreja de Cristo se reúne algumas deliberações precisam ser feitas, todavia o que se pratica nem sempre reflete o Evangelho. É comum “aos/às irmãos/ãs” realizarem o “rito da oração”, cinco minutos antes da tomada de atitude, apenas para reafirmarem levianamente que é Deus quem “manda na obra”. Isto pode ser chamado, também, de falta de vergonha na cara ou, em termos mais polidos, ausência de temor e tremor com relação ao Pai Celeste. Muitas vezes, o que prevalece é o egoísmo, a raiva, a falta de análise situacional, o descaso com uma vida devocional séria, a politicagem religiosa, os jogos de interesses que crucificam o Amor, o (des)gosto pessoal, entre outras coisas.

Ser discípulo/a de Jesus implica em agir com responsabilidade, ou seja, ele/a deve ter uma vida de oração contínua, conhecer a si mesmo/a, nutrir-se com os valores e anseios do Evangelho e aquietar os seus ímpetos a fim de que o Pai Celeste seja exaltado. A vida cristã não é semelhante a um filme de comédia da mais baixa estirpe. A vida cristã não é uma peça de sexo explícito onde ninguém é de ninguém porque as pessoas são coisificadas. A vida cristã não é uma trama de intrigas e paranóias de gente doente e fechada para experimentar todo o vigor da Graça do Senhor. Se o/a discípulo/a mesmo procurando espelhar a vida de Cristo faz algumas besteiras o que dirá aquele/a que farisaicamente bate no peito dizendo que o seu ódio, rancor, ponto de vista exclusivista, auto-imagem distorcida predominam com a “bênção de Deus”? Não dá mais para eximir-se das culpas transferindo as responsabilidades ou as vontades para o Senhor, o Diabo, o Governo, a Sociedade, a liderança eclesial, o pecado estrutural etc.

Está na hora de diferenciar o que significa agir conforme a vontade do Pai Celeste daquilo que é atitude individualista ou partidarista. Para declararmos que foi o “Senhor quem quis algo” alguns requisitos precisam ser contemplados, a saber, as atitudes pessoais e coletivas devem revelar o Reino de Deus, as reflexões e sensações devem ser guiadas pela integralidade do Evangelho, e os frutos das ações devem promover a paz, a justiça, o amor, a misericórdia, a reconciliação, o consolo, a esperança e a salvação. É inadmissível ao Evangelho chamar as "safadezas humanas" de "vontade do Senhor", pois pecado continua sendo pecado e amor é amor. Até mesmo com relação ao pecado sócio-estrutural há como não se submeter, entretanto a dificuldade é inegável. Somente a Graça para nos ajudar a resistir e se sucumbirmos não perdermos a ternura. Apesar de Jesus naqueles momentos que antecedem a sua morte ter titubeado com relação à vontade de Deus que ele havia proclamado anteriormente, nós podemos dizer que a vontade de Deus é a vontade de Jesus e a vontade do Espírito Santo, por conseguinte a Comunidade de Discípulos/as se orienta por esta Triúna Vontade.

É na compreensão bíblico-semita da vontade de Deus (e não na apreensão cultural grega da vontade como determinismo divino e obediência cega do ser humano) acrescida da ação neotestamentária e holística da Graça que se lida melhor com os fracassos, ambigüidades e incertezas. A vontade como Caminho e a Graça dão condições para que se viva em meio aos abismos do viver e se faça escolhas na perspectiva do Caminho. Mesmo que se erre com as escolhas... tentamos acertar e continuaremos com este propósito porque o Caminho Gracioso ou a Graça do Caminho nos acalma, ajuda e impulsiona. Deus quer que tenhamos uma vida qualitativamente melhor e isso passa pela adequada compreensão da vontade de Deus. Para além das grandes viagens teológicas sistemáticas dos distantes tempos gregos e latinos, valendo-nos da reflexão e da experiência (mística-e-concreta), nós devemos identificar corretamente a vontade do Senhor como Caminho de Vida. O Pai Celeste nos fez livres, mas se nós agirmos conforme a vontade Dele nós seremos as pessoas mais felizes desta terra. Desfrutaremos melhor da nossa “liberdade” tornando-nos mais humanizados. Pensemos melhor sobre este assunto.

Graça, paz e bem!

6 comentários:

ROGÉRIO B. FERREIRA disse...

Oi Edemir,

obrigado pelo lembrete no Orkut. Depois tenho que ler o texto com mais calma, que me pareceu bem interessante. Dizem que o problema entre Deus e o homem se resume nisso "a vontade".

Abração,

Roger

Maya Felix disse...

É verdade, quanto mais dependentes de Deus e submissos, mais livres. Como este aparente paradoxo é a verdade viva!

Felipe Fanuel disse...

É inadmissível ao Evangelho chamar as safadezas humanas de vontade do Senhor, pois pecado continua sendo pecado e amor é amor.

Caro pastor Edemir,

Tenho dificuldade em assumir essa questão de "vontade de Deus". Ela é sempre política, até quando se refere à comunidade, como você muito bem quis re-significar.

Quanto mais antropormofismo e personalismo tratamos o divino mais distância assumimos de sua imanência existencial. Afinal, a vontade transcendente camufla e tapa os buracos da vontade imanente. No fundo, estamos dizendo, através do tema teológico "vontade", que não conseguimos lidar com nossos fracassos e incertezas. Para mim, o caminho pastoral é buscar encarar essa incapacidade, sem fugir da situação que nos cerca, por mais complicada que pareça ser.

Estou dizendo com isso que o caminho mais sensato é tomar a Depravação Total e a Queda como condição inerentemente humana, da qual ninguém é capaz de fugir. Aqui não há espaço para vontade, porque ela não tem esse poder todo assim. As pessoas vivem de escolhas, mas aquilo que fazem está condicionado a um ambiente de outras escolhas também. A vida, portanto, é ambígua. E é justamente essa ambigüidade, entre escolha pessoal e social, que resulta em tragédia, expressa brilhantemente na questão shakespeareana ser ou não ser.

Em resumo, nossas escolhas podem descrever o cenário de nossa tragédia, mas nunca têm o poder de dela sair. A escolha é estética. Só isso! Aliás, o moralismo também é estético. Escolher é escrever o romance de sua vida cujo fim já se sabe que será trágico. Por esta razão, troco a "vontade de Deus" pela Graça. A Graça irrompe no meu abismo trágico, não nas minhas escolhas. Pelo contrário, é quando estou perdido que a Graça me salva. Tudo o que de bom acontecer em minha vida e na vida de qualquer mulher ou homem deste mundo é Graça, não escolha, não vontade de uma pessoa divina ou humana.

Sei que, como batista que ainda acho que sou, estou sendo mais reformado que arminiano, mas não vejo saída senão me localizar teologicamente no interlúdio do radicalismo da perdição humana e do radicalismo da Graça universal — in all e for all, para lembrar do saudoso J. Wesley.

Se não teve Graça, pelo menos me permita ser enGraçado.

Um fim de semana cheio de Graça para você.

P.s.: Há um tempo atrás acho que vi vc de longe no Centro de Convivência da Metodista. Como eu estava com pressa, lamento não ter parado para conversar com vc. Da próxima, paro, com certeza. :)

ROGÉRIO B. FERREIRA disse...

A vontade de Deus é a vontade de Jesus... nem sempre!

Oi Edemir,

obrigado pelo rico texto. Finalmente consegui o tempo que precisava para lê-lo.

Sem dúvida não existe ponto mais central e mais complexo na teologia (e em nossas vidas) do que a vontade divina. Aliás foi esse conflito de vontade que fez nosso Senhor suar gotas de sangue: "seja feita a sua e não a minha vontade".

Confesso que particularmnente não temos muita clareza do que seja a vontade de Deus, nem muito menos qual a nossa! Isso só vem a complicar mais ainda a situação.

Não posso acreditar, por exemplo que seja da vontade de Deus a pulverização de igrejas no solo brasileiro. Primeiro pois é baseada normalmente em inimizades e jogos de poderes, segundo pois enfraquece o corpo e por último as divisões não gera uma disperção do povo de Deus (como foi no caso da perseguição do primeiro século) mas sim uma maior competição não saudável por "mercado".

Mas sem dúvida você tocou em pontos centrais, embora eles, como o Felipe bem falou, possam não ajudar tanto assim em se tratando de indivíduas caídos. Sobra-nos a graça como último recurso.

Por enquanto é isso.

Abração,

Roger

ROGÉRIO B. FERREIRA disse...

Mais uma ou duas coisas...

Um paradoxo que existe é que Deus, sempre que nos revela sua vontade, que é boa, agradável e perfeita, quase que anula nosso livre arbítrio. Por isso o Felipe argumentou tão bem.

Se Deus revelasse sempre sua vontade para gente, como sempre insistimos em querer, teríamos pouco ou nenhum espaço para fazer nossas próprias escolhas. Sempre que o Pai nos indica o caminho a escolha já foi feita. Então sobra-nos a obediência.

Como Jesus passou a nos chamar de amigos e não de servos, ele requer de nós algo diferente da obediência. Ele compartilha conosco o que se passa nos bastidores. Passamos então a fazer parte do processo decisório.

Daí Abraão ter alcançado o título de amigo de Deus. Poucos entenderam como ele a dor e o dilema do coração divino em escolher sacrificar o próprio filho unigênito. Mais do que um exemplo de obediência, ele é um exemplo de empatia.

Mas você está plenamente correto, nada como o sermão do monte e os valores do Reino expostos ali para trazer a devida luz do que seja o querer do nosso Pai.

E que a nossa vontade seja cada vez mais satisfazer esse querer, não por obrigação, não por interesse, não por experteza ou conveniência, mas simplesmente por amor. Pois essa é a vontade dele, eu acho!

Abraços fortes e fraternais,

Roger

Edemir Antunes disse...

Amiga Maya e Amigos Felipe e Roger,
graça, paz e bem!

Muito obrigado pelas reações. É muito bom tê-la e tê-los por aqui.

Antes de eu dizer uma heresia com uma suspeita de que Jesus titubeia em um dado momento contra o caminho (vontade de Deus) que Ele mesmo proclamou... prefiro “silenciar”...

Voltando ao tema... É por isso que eu, tentando respeitar a lógica do texto bíblico, coloco vontade de Deus como caminho de vida. Um caminho marcado pela paz, justiça, misericórdia, amor, companheirismo, perdão etc. Eu me esforço para proceder assim, todavia se eu erro o alvo... torno a me levantar e seguir em frente. Este “papo” de queda e pecado (pessoal, coletivo e estrutural) não esfria a minha gana de querer permanecer no Caminho, mesmo porque a Graça me sustém e não me deixa tão paranóico com o “dever de fazer” ou inoperante “porque nada muda mesmo”.

Eu ando devagar, pois outrora tive pressa... Em meio às tensões, paradoxos e incertezas faço o meu caminho na vontade do Caminho anelando por um caminhar mais gracioso.

A fim de manter-me no contexto político das palavras, ações e sentimentos humanos lhes digo: No que tange às graças católica, arminiana e reformada... às vezes elas me deixam “louco”.

Felicidades!